O futebol europeu clama por uma mudança no fair play financeiro
Conforme foi muito bem noticiado nos últimos dias pela imprensa de todo o planeta, o Manchester City conseguiu ganhar uma punição menor se comparada a que foi dada pela UEFA em fevereiro. Originalmente, o clube britânico ficaria dois anos suspenso de competições continentais e ainda teria que pagar € 30 milhões em multa. No frigir dos ovos, veio uma multa de € 10 milhões, um terço do valor original, além do sinal verde para que o clube participe de competições europeias nas próximas temporadas.
As alegações eram bem claras: violações referentes ao fair play financeiro e falta de cooperação com as investigações. Na prática, os Citizens maquiaram suas contas ao superfaturarem seu patrocínio master: no papel, a Etihad Airways pagava £ 67,5 milhões de patrocínio, mas e-mails vazados provaram que somente 12% desse valor vinha da companhia aérea, com os outros 88% correspondendo a dinheiro proveniente dos controladores do City Football Group, dono do Manchester City e de várias outras equipes pelo mundo.
Essa já era uma suspeita antiga da UEFA, que chegou a restringir o clube mancuniano no número de inscritos em competições europeias há mais de cinco temporadas. Uma série de e-mails divulgados no final de 2018 pela revista alemã Der Spiegel reacendeu a vontade de investigação em Nyon. No entanto, a punição foi abrandada pela Corte Arbitral do Esporte, que considerou que as acusações prescreveram, sobretudo após sucessivos ataques do Manchester City à UEFA, através de notas de repúdio criticando o processo e dificultando a colaboração com as investigações.
Houve uma estratégia de mestre, com o clube atrasando a resolução da investigação em cima dele próprio – e no final sendo premiado por isso. Uma matéria no site da UEFA deixa bem claro como que funciona essa relação entre donos de clube e os patrocínios que possam vir dos próprios donos.
5) Os proprietários podem injectar dinheiro no clube à sua vontade ou através de patrocínios?
Se o proprietário injecta dinheiro no clube através de um contrato de patrocínio com uma empresa com a qual está relacionado, os órgãos competentes da UEFA terão de investigar e, se necessário, ajustar as receitas de patrocínio nos cálculos do resultado do equilíbrio de contas para um nível mais adequado (“valor justo”) de acordo com os preços de mercado.
A matéria linkada no segundo parágrafo desse texto menciona que o Etihad Airways, no papel, investia £ 67,5 milhões no Manchester City por temporada, fato comprovado pelo Guardian. Esse valor corresponde a temporada 2015-16, a mesma na qual o Barcelona, a maior receita do futebol mundial, fechou um contrato de £ 47 milhões anuais com a Rakuten. Diante disso, fica muito claro o doping financeiro existente nesse caso.
Outras situações são mais absurdas e transparecem o motivo principal de uma revisão no fair play financeiro da UEFA. As compras de Neymar e Kylian Mbappé pelo Paris Saint-Germain só não ocorreram na mesma temporada pois houve uma manobra, uma cláusula inserida na transação do jovem francês, instituindo a obrigação de compra somente caso o PSG não fosse rebaixado no campeonato local. Como podemos lembrar, foram duas aquisições de valores obscenos e que, se estivessem agrupadas na mesma temporada, poderiam fazer um grande estrago nas contas parisienses.
Diante de brechas e clubes passando ilesos, era de se esperar que vários outros se livrassem de punições, mas não é o que acontece. Na atual temporada, o Trabzonspor, um dos clubes mais tradicionais da Turquia, tinha uma chance clara de retornar à Liga dos Campeões, mas não poderá conquistar a vaga após ser punido por duas temporadas justamente por violações ao fair play financeiro. E isso não é exclusividade dos turcos: outros emblemas históricos de países mais periféricos, como Željezničar e CFR Cluj, foram punidos com a ausência nos torneios continentais nas últimas temporadas.
Na temporada passada, o Milan passou por situação similar. O clube rossonero não conseguiu se inscrever na Liga Europa por estar sancionado pela mesma regra do fair play financeiro. A regra do FPF pode ser resumida de uma forma bem simples: você precisa manter suas contas em dia, investindo no máximo um pouquinho a mais do que você recebe de receitas dentro do clube. É um regulamento coerente, mas que fica desmoralizado após as situações passadas pelos clubes chamados “novos-ricos” e que ainda tem um problema bem aparente.
Se você nunca investir mais do que você tem de receitas, é bem difícil haver uma mudança de patamar. Isso serve para negócios e no futebol não é diferente. Os clubes controlados pela Red Bull passaram por uma mudança abrupta em seu fluxo de caixa e foi isso que permitiu que eles passassem a ser competitivos. A mesma lógica se aplica a vários outros clubes de crescimento recente, como Leicester City e Wolverhampton. Mas não é o que acontece com todos.
Sabemos que há uma boa diferença entre investir para crescer e investir para caminhar à falência, mas este contexto atual é o que dificulta a competitividade nas principais ligas. O cenário dos dias de hoje dificulta cada vez mais a existência de clubes que causem problemas dentro de campo às forças já consolidadas. Cada vez mais os grandes clubes europeus compreendem que as ligas nacionais são um desafio pequeno, e alguns clamam pela existência de um campeonato supranacional, a famigerada Superliga Europeia. Aos outros, cabe torcer por administrações desastrosas e contratações questionáveis.
Também existe o mesmo problema relacionado a licença da UEFA. Em temporadas recentes, clubes como Genoa e Desportivo Aves foram proibidos de disputar a Liga Europa e sabemos que as competições da UEFA são um bom caminho de obter receita. A participação na fase de grupos rende ao participante quase € 3 milhões, fora bônus por vitórias e empates. É outro caminho para um clube se tornar competitivo, e por mais que a licença tenha um motivo para existir, quando são inseridos bloqueios em demasia, a tendência é que fique sempre o mesmo grupo de clubes participando das competições, com algumas exceções.
Podemos perceber que essas situações convergem em um único ponto: sem a presença de mais clubes competitivos, a motivação pela disputa doméstica diminui e novamente aquele mesmo grupo que vive falando da criação de uma Superliga Europeia ganha voz. Se a UEFA ainda deseja manter seus produtos em dia e competitivos, precisa sanar essa “sinuca de bico” o quanto antes, para que não haja uma saída em bloco da entidade (e infelizmente isso se avizinha cada vez mais) e também para que os regulamentos passem a valer para todos. Por mais que a exclusão do banimento não tenha partido de Nyon, é necessário se mexer para evitar uma desmoralização ainda maior.