Com três brasileiros e um projeto estatal, o Iraque chegou a Copa do Mundo
Das 79 seleções que já jogaram ao menos uma edição de Copa do Mundo até hoje, 20 estiveram na disputa por somente uma ocasião. São ocasiões especiais, geralmente acontecendo devido a uma geração de ouro de um país, um investimento no esporte ou opção política. Também não é raro acompanharmos disputas internas que acabam prejudicando o desempenho, sendo este um aspecto abrangente até a seleções tradicionais, a ponto de ocorrer a demissão de um treinador dias antes da estreia.
E quando isso tudo acontece com uma só seleção? Olhando do futuro, 34 anos depois, podemos parar e pensar nos problemas que isso pode causar. Uma troca de treinador fatalmente leva a uma nova convocação, podendo gerar um time desentrosado. A interferência política no esporte pode gerar problemas ásperos referente a escolha dos atletas. Era bem difícil pensar nisso dentro do ambiente que existiu no Iraque nos anos 1980, até pelo contexto da época.
Não falamos de uma seleção puramente inocente dentro de campo, pois apesar da baixíssima experiência internacional era um time que conseguia dominar o futebol local. Sob o comando de Ammo Babba, treinador “tampão” dos Leões da Mesopotâmia por muitos anos, o Iraque conquistou o ouro nos Jogos Asiáticos de 1982 e a Copa do Golfo Árabe de 1984. 1984 também foi um ano marcante para o esporte local: Uday, o filho do então presidente Saddam Hussein, assumiu o comando do comitê olímpico e da federação locais.
Sendo uma figura bastante controversa, Uday ficou conhecido por sua crueldade em determinadas situações. Em 1988, Uday assassinou Kamel Han Gegeo, guarda-costas do próprio pai, em uma festa em homenagem à primeira-dama do Egito. Numerosas acusações de estupros e torturas permeiam a história do filho mais velho de Saddam, morto em 2003, e não foi diferente no âmbito esportivo. Atletas iraquianos de vários esportes olímpicos relataram que foram torturados após não conseguirem vitórias.
Nos anos 1980 a relação de Uday com o futebol ficou ainda mais forte. Em 1983, ele fundou o Al-Rasheed, que rapidamente se tornou o clube mais vitorioso do país, garantindo o tricampeonato da liga local entre 1987 e 1989. O clube foi dissolvido em 1990. A relação não ficou restrita ao futebol de clubes, pois como foi dito anteriormente Uday foi presidente da federação iraquiana a partir de 1984. A mudança de patamar da seleção local tinha sequência e agora em uma nova competição: as eliminatórias para a Copa do Mundo do México.
Com direito a duas vagas diretas na competição, a AFC introduziu um novo regulamento para as eliminatórias. As 27 seleções inscritas foram divididas em duas zonas e ambas tiveram regulamentos idênticos: a primeira fase tinha quatro grupos, nos quais o líder se classificava às semifinais e os vencedores disputariam a final. A zona 1 era representada por seleções do Oriente Médio e a zona 2 tinha somente seleções do leste asiático, com a exceção de Taiwan, seleção redirecionada para as eliminatórias da Oceania.
Os quatro grupos da zona 1 teriam entre três e quatro seleções, mas com as desistências de Omã e Irã, alguns grupos foram reduzidos a confrontos de ida e volta. O Iraque ficou no grupo 1B, com Catar, Líbano e Jordânia. Tanto libaneses como iraquianos teriam que mandar seus jogos em campo neutro devido as guerras que aconteciam. Após quatro goleadas e um total de 27 gols sofridos, o Líbano abandonou a competição e seus jogos foram anulados. Sob o comando de Akram Salman, os Leões da Mesopotâmia venceram a Jordânia por 3-2 e levaram 3-0 do Catar de Evaristo de Macedo.
Com todos os três países empatados em dois pontos, o returno definiria o classificado. Com duas vitórias, 2-0 na Jordânia e 2-1 no Catar, em ambas com grande atuação de Ahmed Radhi, um dos maiores jogadores iraquianos de todos os tempos e que faleceu em junho de 2020 em decorrência da covid-19, a classificação veio. O desempenho irregular custou o emprego de Salman, que foi substituído na seleção principal por Wathiq Naji. Nesse espaço de tempo, a seleção B iraquiana conquistou o título da Copa das Nações Árabes em cima dos mesmos rivais de eliminatórias.
Passada a primeira fase, veio o mata-mata. Na semifinal, o Iraque enfrentou a seleção dos Emirados Árabes Unidos. Os emiradenses eram treinados por Carlos Alberto Parreira, em busca da segunda disputa de Copa do Mundo após a participação em 1982 com o Kuwait. Novamente, o Iraque teve uma exibição irregular. No jogo de ida, uma vitória de virada por 3-2 em Dubai, que garantiu a classificação no gol fora de casa após perder o jogo de volta por 2-1 em Ta’if, na Arábia Saudita. A vaga na final só veio com um gol aos 43 do segundo tempo marcado por Karim Saddam.
Novamente, o treinador não durou muito. Wathiq Naji foi mandado embora. O interesse em garantir a vaga ficou muito claro a partir do momento em que o próprio Saddam Hussein mandou seu filho (e presidente da federação iraquiana) Uday ao Rio de Janeiro em busca de Jorge Vieira, como ele próprio contou a Milton Neves em uma entrevista na Rádio Bandeirantes no início de 2007. A presença de brasileiros treinando nos países árabes já era abundante: além da Parreira e Evaristo, Dino Sani assumiu o comando do Catar no final de 1985 e José Faria comandava o Marrocos desde 1983.
Sempre guardamos em nossa memória os treinadores brasileiros que aparecem nas Copas do Mundo. Como não esquecer de Otto Glória na seleção portuguesa de 1966, ou Carlos Alberto Parreira comandando a África do Sul na Copa do Mundo de 2010? Por muitos anos, a receita de um treinador brasileiro gerou resultados. Seja por Otto Glória, Tim, Paulo César Carpegiani ou pelos brasileiros que treinaram sua própria seleção, era uma época próspera para os comandantes de nosso país.
Conforme declarações do próprio Jorge Vieira à Revista Placar 812 de dezembro de 1985, o planejamento era um empate na ida com a Síria e uma vitória na volta, que seria disputada em campo neutro. Era um confronto bem aguardado, pondo frente a frente duas das maiores seleções da época no Oriente Médio, ambas buscando debutar em uma Copa do Mundo. E assim aconteceu, com um empate sem gols na ida diante de 25 mil pessoas em Damasco e uma vitória na volta em Ta’if por 3-1, com gols de Hussein Saeed, Shaker Mahmoud e Khalil Allawi, em confronto que foi transmitido pela TV Globo.
Jorge Vieira tinha um currículo que justificava muito bem a contratação feita pela família Hussein. Nascido em 1934, teve pouquíssima experiência no futebol profissional, atuando por alguns anos da década de 1950 no Madureira. Aos 26 anos de idade, Jorge Vieira comandou o America do Rio no que até hoje é o último título estadual do clube, em 1960. Em 1965, teve uma experiência de uma temporada no Belenenses, chegando ao sétimo lugar na primeira divisão portuguesa. Nos anos 1970, voltou a ter trabalhos de destaque no Brasil, garantindo o primeiro turno do Campeonato Paulista de 1977 para o Botafogo e o vice-campeonato brasileiro de 1978 com o Palmeiras.
Tamanha história na beira dos gramados explica a confiança dada por Saddam e Uday ao brasileiro. Em um país onde estrangeiros não poderiam trabalhar no ambiente de futebol, Jorge levou junto o professor Carlos Alberto Lancetta, ex-preparador físico do America carioca. Ambos foram acompanhados pelos irmãos Edu Coimbra e Antunes, que inicialmente ficariam a cargo da seleção sub-20. O planejamento para a Copa do Mundo era integrar o massagista José Antônio e o médico Rubens Lopes, ex-Flamengo e Bangu e hoje presidente da FERJ.
A mesma Revista Placar 812 mencionou algumas das razões do sucesso, entre elas, a financeira. “Os jogadores tem todas as despesas pagas, belíssimos prêmios por vitória e, quando ganham torneios internacionais, recebem um Passat brasileiro de presente”, menciona a reportagem de Vicente Alessi Filho. Jorge Vieira também mencionou que cada um dos membros da comissão técnica brasileira levou “um carro, uma gorda gratificação e o aluguel de um apartamento num complexo residencial em Bagdá”. O medo também se fazia presente dentro de campo: Jorge Vieira mencionou na mesma entrevista à Rádio Bandeirantes que os jogadores, caso não conquistassem a vaga no México, estariam na “primeira linha da guerra”, com mais chance de serem mortos.
A vinda de Rubens Lopes e José Antônio acabou não se concretizando. Jorge Vieira não foi à Copa do Mundo: como as revistas Placar do início de 1986 trouxeram, as brigas internas apareceram. A revista n. 819, de fevereiro de 1986, menciona que Edu Coimbra voltou ao Iraque 12 dias antes de Jorge Vieira e mudou todo o planejamento de preparação, forçando o último a rescindir seu contrato. Um mês depois, a Placar n. 823 relatou o fato como uma briga entre o treinador e seu então assistente. Na Placar n. 829, de abril, Edu deu sua versão do fato, dizendo que “Jorge Vieira queria vir embora antes do fim das eliminatórias, pois estava doente”.
Edu teve uma passagem muito curta como treinador do Iraque, durando somente um jogo, um empate por 1-1 com a Romênia. Ao ser perguntado sobre uma possível demissão do comando dos Leões da Mesopotâmia, disse que “os iraquianos queriam outro técnico para compor a comissão técnica” e que os boatos partem “de um amigo de Jorge Vieira”. Sob circunstâncias pouco esclarecidas, Edu foi trocado por Evaristo de Macedo em maio, a um mês da Copa do Mundo. Alguns nomes conhecidos, como Rubens Minelli e Zagallo, chegaram a ser cogitados.
Chegando praticamente em cima da viagem, o primeiro problema para Evaristo de Macedo apareceu antes da estreia. O líbero Adnan Dirjal, atual Ministro da Juventude e dos Esportes do Iraque e na época uma das peças defensivas mais importantes, lesionou o tornozelo esquerdo num jogo-treino contra o Toluca e foi cortado. Tal como oito dos 22 convocados à Copa do Mundo, Dirjal jogava no Al-Rasheed, o clube fundado por Uday Hussein. As mudanças também aconteceram fora do elenco: saiu o tradicional uniforme verde e branco, as cores utilizadas pela seleção por muito tempo, vieram uma camisa azul e outra amarela, por decisão da própria federação local.
A estreia ocorreu diante do Paraguai no Nemesio Díez, em Toluca. Foi o jogo mais parelho da campanha, com um gol anulado dos iraquianos e a atuação decisiva de Romerito a favor dos paraguaios, o jogador que marcou o gol solitário da partida. Quatro dias depois, a segunda partida contra a Bélgica foi mais complicada, com Basil Hanna expulso após a Bélgica fazer 2-0. Ainda assim, Ahmed Rahdi conseguiu marcar um gol de honra. Após duas partidas em Toluca, o jogo derradeiro seria no Azteca, na Cidade do México.
Era um jogo especial diante dos donos da casa, que faziam uma grande campanha e tinham totais condições de terminar a chave em primeiro lugar. O Iraque também poderia se classificar com uma vitória, mas dependeria de uma combinação de resultados para fechar o grupo como um dos melhores terceiros. A vitória não veio e a Revista Placar n. 839 definiu o jogo, que teve público superior a 100 mil pessoas, como uma partida sem o poderio ofensivo do México, pois Hugo Sánchez cumpria suspensão após levar dois cartões amarelos. Coube ao zagueiro Fernando Quirarte tirar o zero do placar e concluir a campanha iraquiana na Copa do Mundo.
Desde então, o Iraque nunca retornou a uma Copa do Mundo. A campanha nas eliminatórias seguintes foram ruins, para a ira de Uday Hussein. Após repetidos insucessos, o esporte no país definhou. Saddam Hussein foi condenado à morte e enforcado no final de 2006, depois de anos de guerra dentro e fora do Iraque. Felizmente o esporte soube dar uma alegria ao povo iraquiano após páginas tristes de sua história: mesmo sem poder atuar em seu próprio país, foi sob o comando de outro brasileiro, Jorvan Vieira, que os Leões da Mesopotâmia garantiram uma vaga na Copa da Ásia de 2007 e conseguiram de forma muito surpreendente o título. Uma recompensa que ainda é insuficiente, mas marca anos de luta na busca por um país novamente forte no futebol.