Como o futebol ajuda a explicar parte da história do automobilismo argentino

Como o futebol ajuda a explicar parte da história do automobilismo argentino
Créditos: divulgação/El Aire de Santa Fé

É difícil traçar um paralelo entre automobilismo e futebol, dois esportes que são bem distintos. Um deles é bem acessível e se joga com duas traves, um campo, uma bola e gente interessada para participar; o outro é bem mais caro e exige mais estrutura nos equipamentos e no local da prática para quem quer que esteja interessado. Os empecilhos proporcionados pelos custos não impediram o futebol argentino de se juntar, em dado momento da história, ao rico automobilismo local.

Quando descemos o mapa do Brasil vemos que a cultura do automobilismo está bem presente no Sul. O estado do Paraná tem três autódromos que receberam recentemente a nossa Stock Car: Cascavel, Curitiba e Londrina. No Rio Grande do Sul, outros três (Tarumã – localizado em Viamão, Santa Cruz do Sul e Nova Santa Rita) também já hospedaram a categoria máxima do automobilismo nacional. A cultura das corridas também está bem presente em terras argentinas, sendo anterior ao período de ouro que tinha nomes como Juan Manuel Fangio, José Froilán González e os irmãos Oscar e Juan Gálvez.

Tal como aconteceu com o futebol, o automobilismo argentino nasceu em Buenos Aires. O Automóvil Club Argentino foi fundado na capital da Argentina em 1904 e até hoje é o órgão máximo do esporte a motor no país, uma função similar à exercida pela Confederação Brasileira de Automobilismo em nosso país. Dois anos após a fundação do ACA houve a primeira corrida na Argentina: 23 pilotos percorreram um traçado que ia do bairro portenho de La Recoleta até Tigre, uma das cidades da Grande Buenos Aires.

Felizmente a febre do automobilismo não ficou restrita à capital e rapidamente o interior também gostou da ideia. É a partir desse momento que o futebol se aproxima do esporte a motor. Em 7 de janeiro de 1907 era fundado o Club Argentino Atlético de Rafaela na pequena cidade de Rafaela, província de Santa Fé. O nome se manteve por mais alguns anos até que a instituição passou a ter o nome atual, Club Atlético de Rafaela. Como um bom clube fundado no Século XX, o futebol não era a única modalidade: havia espaço para tiro ao alvo, natação, xadrez e até o automobilismo.

Segundo os registros do próprio clube, a primeira corrida oficial foi organizada e realizada pelo Atlético de Rafaela em maio de 1919. Com sete competidores (foto abaixo), a corrida de 320km que percorreu a própria cidade e outros locais próximos como Morteros e Sunchales foi vencida por Oberdán Piovano em um Overland após pouco mais de quatro horas desde a largada. Enquanto dentro de campo o clube não era competitivo frente aos adversários santafesinos, nas pistas o incentivo ao automobilismo era cada vez maior.

Créditos: reprodução/Atlético de Rafaela

A empolgação era tanta que em 1926 houve a realização da primeira edição das 500 Milhas Argentinas com a organização do Atlético de Rafaela. Na manhã de 6 de junho daquele ano, 29 carros largaram em um piso de terra diante de quase 40 mil pessoas. Uma tremenda chuva por volta das 9h daquele dia fez a prova ser paralisada com Domingo Bucci na liderança. Diferentemente do que acontece hoje, a prova não foi encerrada, mas sim pausada e recomeçou quase 90 dias depois, terminando com a vitória do portenho Raúl Riganti.

Por muito tempo a prova seguiu da mesma forma, as 500 milhas eram disputadas em estradas rurais de Rafaela e cidades vizinhas. Ainda não havia nenhuma estrutura por parte do Atlético que permitisse a realização do evento em um espaço regular tal como acontecia desde 1909 em Indianápolis, e era muito difícil imaginar que seria possível obter 3,2 milhões de tijolos para a construção de uma pista – que foi o que aconteceu nos Estados Unidos. Mesmo as condições adversas do asfalto não impediram a participação e vitória de Juan Manuel Fangio em 1950 em uma edição da corrida disputada na véspera do Natal.

A situação começou a mudar em 1953. Para consolidar as 500 Milhas Argentinas e permitir o desenvolvimento do automobilismo e do Atlético de Rafaela, a assembleia de sócios do clube autorizou a compra de um terreno de 1,32 milhão de m². O terreno foi comprado e ali foi construído o Autódromo Ciudad de Rafaela, um oval de terra de 4,66 km de extensão. O primeiro evento ocorreu seis meses após a compra do espaço: uma corrida da categoria Turismo Carretera vencida por Juan Gálvez.

Dali em diante o Atlético de Rafaela se consolidou como um dos principais nomes do automobilismo argentino. Era uma estrutura muito boa para os padrões da época – no início da década de 1950 poucos ovais ao redor do mundo eram asfaltados, a maioria era de terra batida. Até mesmo as pistas históricas como Milwaukee Mile, um oval de uma milha construído em 1903 e localizado no estado americano do Wisconsin, usavam a terra como piso. Das 34 etapas da temporada 1952 da NASCAR, principal categoria do automobilismo americano, somente quatro aconteciam em ovais asfaltados – duas em Darlington, Carolina do Sul e duas em Dayton, Ohio.

Planejando voos mais altos, o asfalto em Rafaela chegou entre 1965 e 1966. Ele foi inaugurado com a 28ª edição das 500 Milhas Argentinas, vencida por Jorge Cupeiro. Já era possível ver uma clara evolução na parte automobilística do clube: o Atlético começou nas corridas organizadas em traçados puramente rurais e agora tinha um autódromo para chamar de seu, com um evento anual e bom comparecimento de público.

Créditos: Wikimedia Commons

Desde 1970 a diretoria do autódromo já conversava com o United States Auto Club (USAC), órgão organizador do USAC Championship Car, um antecessor do que conhecemos hoje como Fórmula Indy. Após algumas reformas necessárias para deixar o traçado mais seguro e o pagamento de US$ 90 mil, o acordo estava selado: pela primeira vez a principal categoria de monopostos do automobilismo americano teria uma corrida oficial fora da América do Norte. Nomes pesados como Al Unser, Cale Yarborough, Mike Mosley, Gordon Johncock e Gary Bettenhausen participaram da rodada dupla disputada em 28 de fevereiro de 1971.

Infelizmente nem tudo correu da forma esperada. A organização queria a participação de pilotos argentinos – e até teve, com o piloto Carlos Pairetti obtendo um 12º lugar na primeira corrida e um 9º lugar na segunda etapa da rodada dupla. Havia a expectativa da participação de outros pilotos argentinos como Ángel Monguzzi e Jorge Ternengo, mas não houve nenhum acordo. Com isso, 27 pilotos se inscreveram: 25 americanos, o canadense Ludwig Heimrath e Pairetti.

Apesar de Lloyd Ruby ter ficado com a pole position após fazer uma volta em 59seg74, quem dominou ambas as etapas foi o histórico Al Unser. O tetracampeão das 500 Milhas de Indianápolis vinha de uma grandiosa temporada 1970, na qual havia vencido 10 das 18 etapas do campeonato da USAC – entre elas, sua primeira 500 Milhas de Indianápolis – e conquistado o primeiro título. Enquanto a primeira etapa foi marcada por uma boa disputa entre ele, Ruby e Mike Mosley, a segunda foi dominada tranquilamente por Unser, que venceu mais três etapas do campeonato em 1971: Phoenix, Milwaukee e as 500 Milhas de Indianápolis.

Desde então o Autódromo de Rafaela nunca mais recebeu uma etapa de uma categoria internacional. A brasileira Fórmula Inter havia marcado uma de suas etapas da temporada 2020 para o autódromo, mas a corrida foi cancelada devido a pandemia de covid-19. Mesmo a implementação de três chicanes e uma reta no centro do oval com o objetivo de fazer um traçado misto não inutilizou boa parte do espaço interno do autódromo, que agora também abrange um complexo poliesportivo com 10 campos de futebol para as categorias de base, um campo de hóquei sobre grama e um espaço ao ar livre para a prática de tiro ao alvo.

Mesmo após anos à sombra de outros clubes de Santa Fé, o Atlético Rafaela atualmente vive sua melhor fase dentro de campo. Foi possível notar ao longo de todas as passagens históricas do Autódromo Ciudad de Rafaela que o clube foi por vezes um personagem secundário em todas elas, se destacando na organização. Desde a virada do século, a equipe de futebol vive sua melhor fase. Após estrear na segunda divisão argentina em 1989, o Atlético de Rafaela passou 14 temporadas no segundo nível do futebol local até conquistar o título da Primera B Nacional na temporada 2002-03.

De 2003 para cá o Atlético disputou a Primera División argentina por oito temporadas e teve como melhor campanha um 8º lugar no Torneo Inicial 2013, quando era comandado por Jorge Burruchaga. Enquanto a equipe de futebol vive sua melhor fase dentro de campo, os argentinos fanáticos por automobilismo ficam na torcida para que o Autódromo Ciudad de Rafaela siga sendo uma das principais representações do esporte local.

Créditos: divulgação/Autódromo Ciudad de Rafaela

João Pedro

Embora não faça nenhum curso relacionado ao jornalismo, vê na escrita de textos uma forma de externar sua paixão sobre o esporte. Esteve por dois anos na equipe de esportes da Rádio do Comércio de Barra Mansa.

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