Como o AFC Wimbledon se tornou um símbolo da força dos torcedores

Como o AFC Wimbledon se tornou um símbolo da força dos torcedores

Era 2 de agosto de 2001. A nova temporada estava prestes a começar e o Wimbledon FC, pela segunda temporada seguida na então First Division (o que hoje é chamado de Football League Championship), se preparava para receber o Birmingham City nove dias depois. Uma carta chegava ao diretor executivo da Football League, David Burns, endereçada pelo então presidente do Wimbledon, Charles Koppel, requisitando uma autorização para a mudança do clube para Milton Keynes a partir da temporada 2003-04. Esse era o início de uma das novelas mais longas do futebol mundial – e que existe, após numerosas “adaptações de enredo”, até os dias de hoje.

Como toda história real, sempre existem os antecedentes. O Wimbledon não era um dos clubes que faziam parte da Football League há mais de meio século, aqueles que foram eleitos para participar e compor a criação das novas divisões. Em 1977, a pirâmide do futebol inglês já tinha o formato utilizado até os dias de hoje, e a Fourth Division, quarta divisão, tinha alguns nomes comuns das principais divisões atualmente, como o Bournemouth, o Huddersfield Town e o Watford, este na primeira temporada sob o comando de Elton John. Entretanto, alguns nomes lá presentes hoje são bem incomuns nas principais divisões, o caso de Aldershot, Southport e Workington.

Este último vinha em uma sucessão de péssimos resultados: foi vice-lanterna nas temporadas 1973-74 e 1974-75, lanterna na temporada 1975-76 e novamente o último colocado na temporada 1976-77. Todo ano, os quatro últimos da Fourth Division corriam o risco de serem “desfiliados” da Football League, e isso era definido através de uma votação entre os 92 componentes das quatro principais divisões. A corda arrebentou no lado mais fraco, e o Workington, que nunca mais voltou a disputar a Football League, foi substituído pelo Wimbledon, atual campeão da Southern League, à época uma “quinta divisão”. Esse sistema de eleição de clubes para a Football League perdurou até 1986.

O início da participação do Wimbledon no futebol profissional inglês foi um pouco conturbado: sucessivos acessos e rebaixamentos deram ao clube o comportamento típico de um time iô-iô entre a terceira e a quarta divisão. A partir de meados da década de 1980, isso mudou: dois acessos consecutivos botaram o clube do distrito mais famoso do tênis mundial na segunda divisão. A permanência lá foi curta: após duas temporadas, o acesso veio e 10 anos depois de sair do amadorismo, o Wimbledon chegava na First Division, o principal nível do futebol inglês.

Muito longe das cifras que permearam a primeira divisão nos últimos 20 anos, havia uma grandiosa presença de jogadores britânicos (com raras exceções, como o argentino Osvaldo Ardiles) e um equilíbrio bem claro na First Division, e isso foi evidenciado pela campanha de estreia do Wimbledon: um sexto lugar, em pontuação competitiva se comparada a grandes nomes como Liverpool, Arsenal e Manchester United no primeiro ano de Alex Ferguson. A glória maior veio na temporada seguinte: com um tento solitário de Lawrie Sanchez, o Wimbledon conquistava a Copa da Inglaterra em cima do Liverpool. A zebra apareceu na forma da Crazy Gang, apelido dado ao elenco do Wimbledon por conta do comportamento excêntrico de seus jogadores.

Só que nem tudo são flores. O título da FA Cup credenciaria em condições normais qualquer clube a disputar a Copa das Copas, a chamada “C2”, disputada somente pelos campeões das copas nacionais e segunda competição em importância da UEFA, atrás somente da então Copa dos Campeões. Só que devido aos incidentes em Heysel, na final disputada entre Juventus e Liverpool em 1984, os clubes ingleses foram banidos de competições europeias por cinco temporadas, e o Liverpool ainda ganhou uma temporada a mais de suspensão. Anos depois, com a tragédia de Hillsborough e o Relatório Taylor, foram proibidos os setores para se torcer de pé nos estádios britânicos.

Aqui já começavam algumas complicações para o Wimbledon, cujo estádio (Plough Lane, representado na foto acima) não atendia as especificações necessárias – e também seria inviável economicamente adequar o campo às novas regras. A solução foi mover o clube para um estádio a 10km de distância, e ainda assim não seria um espaço próprio: o Selhurst Park, que fora utilizado por Crystal Palace e Charlton entre 1985 e 1991, agora seria dividido entre as Águias e o Wimbledon. O Plough Lane seria dividido entre os reservas dos dois clubes até 1998, e depois de quatro anos inativo, o estádio foi finalmente demolido em 2002.

Mesmo com campanhas sólidas na recém-criada Premier League, o clube passou a sofrer com a falta de dinheiro e também falta de público. Por várias vezes, públicos na casa dos três mil pagantes apareceram nos borderôs de Selhurst Park. Entretanto, por ser um clube considerado mais “família” e com uma presença bem baixa de hooligans, a média de público começou a crescer a partir de 1994. Desde aquele período já haviam algumas sugestões de realocação do clube. Ainda em 1994, correu um forte rumor de que o clube poderia se mover para Dublin – ideia prontamente rejeitada por todos os participantes do Campeonato Irlandês.

Com o clube passando a brigar constantemente contra o rebaixamento a partir da temporada 1997-98, os rumores reapareceram. O Wimbledon se sustentou por mais três temporadas até ser rebaixado na temporada 1999-2000 e ver a média de público despencar novamente logo na primeira temporada de segunda divisão depois de 14 anos no primeiro nível. Uma temporada de exibição sólida, com a vaga nos play-offs perdida nas últimas rodadas, foi insuficiente para manter a presença maciça do público.

A 90 quilômetros dali, surgira um ano antes uma ideia de um estádio moderno, que viria acompanhado de um hipermercado, um hotel e um centro de conferências. Tudo muito bonito, mas Milton Keynes não tinha um clube profissional, o principal time da cidade jogava a nona divisão e não tinha perspectiva nenhuma de crescimento a longo prazo. Houveram conversar com Luton Town, Barnet, Crystal Palace, Queens Park Rangers e Wimbledon, estes dois últimos em grave crise financeira e com rumores de uma fusão para que ambos pudessem sobreviver.

Depois desse giro, finalmente voltamos a agosto de 2001, o mesmo mês que foi citado lá no início do texto. Duas semanas depois do envio da carta, a Football League respondeu negando veementemente a ideia de mudança, citando que “a existência de franquias no futebol seria desastrosa”. A carta, enviada por Charles Koppel, presidente do clube que era totalmente “verde” no esporte – a ponto de nunca ter assistido uma partida de futebol no estádio antes de assumir o cargo, conforme citado por Stephen Morris em “The People’s Game?: Football, Finance and Society” (2003) – teve retorno: depois da rejeição inicial, houve recurso por parte do presidente do Wimbledon. Ele citou, entre outras coisas, que “a mudança era a única forma de fazer o Wimbledon sobreviver”.

Em janeiro de 2002, um tribunal arbitral, após levar numerosas considerações que iam da torcida do Wimbledon até a Scottish Football League (entidade que organizava a primeira divisão na Escócia entre 1998 e 2013), determinou que a decisão da Football League “não foi tomada de forma correta” e em abril do mesmo ano, perto do final de mais uma temporada na qual o Wimbledon “bateu na trave”, a Football League concluiu que o caso deveria ser analisado por uma comissão independente.

A guerra de argumentos aconteceu em maio de 2002. De um lado, a Football Association e a Football League, defendendo a ideia de que “a mudança de cidade iria drasticamente contra as ideias do jogo, onde clubes são plenamente identificados com sua comunidade local”. Do outro lado, o argumento do Wimbledon FC defendia que “por jogar fora de seu estádio próprio há 11 anos, o clube não tinha mais fortes raízes com a população local” e que “a mudança era a última chance de salvação financeira do clube”. Outras discussões envolveram a manutenção da identidade do Wimbledon mesmo após a mudança, e até mesmo uma reforma do Plough Lane, algo inviável do ponto de vista econômico. Por dois votos a um, a mudança foi aprovada em 28 de maio de 2002.

Dois dias depois, a história ganhou um novo curso. A Associação de Torcedores do Wimbledon, indignada com toda a situação, decidiu por fundar um novo clube, de nome bastante semelhante: o antigo Wimbledon FC não era mais a prioridade para os torcedores; isso seria, a partir daquele momento, papel do AFC Wimbledon. Em uma rapidez tremenda, foram construídos escudo (muito semelhante ao utilizado pelo antigo clube), uniformes (praticamente as mesmas cores) e uma parceria com o Kingstonian, da sexta divisão, que dividiria o campo de Kingsmeadow com um clube recém-formado, mas extremamente apoiado por sua torcida, e que iniciaria sua caminhada da nona divisão.

Com ampla rejeição da FA, a mudança começou a ocorrer e a temporada 2002-03 ainda foi jogada no Selhurst Park. A torcida do recém-formado AFC Wimbledon compareceu em peso, mas não dentro do estádio, e sim fora dele, tentando convencer muitos torcedores a deixarem de comparecer nas partidas do Wimbledon FC. Os públicos daquela temporada foram fraquíssimos para um clube de segunda divisão inglesa, chegando a irrisórios 849 presentes (contando jogadores das categorias de base e imprensa) em uma partida intermediária contra o Rotherham United. Através dessa pressão e da ausência de público, o Wimbledon FC se afundou em dívidas, mesmo após bater na trave por outra vez por uma vaga nos play-offs da First Division.

A tormenta parecia não ter fim e o clube seguiu jogando diante de públicos pequenos em Selhurst Park até setembro de 2003, mês no qual finalmente foi realocado para Milton Keynes, mas não para o estádio planejado, e sim para o National Hockey Stadium, um espaço que recebeu públicos maiores e viu a queda do clube. A derrota para o Sunderland em abril de 2004 que culminou no rebaixamento para a rebatizada League One foi só a ponta de um iceberg que envolveu uma forte crise econômica de um clube que vendia jogadores para tentar se manter financeiramente saudável, e que mesmo fazendo isto não conseguiu se sustentar por muito tempo sem tanta presença da torcida original.

O clube foi salvo da falência através do consórcio Inter MK, liderado por Pete Winkelman e que foi o principal criador da ideia de ter um estádio e todo um ecossistema ali integrado – uma ideia datada de 2000 e que foi concretizada em 2007, no chamado Stadium MK, que foi utilizado até para um amistoso da seleção brasileira contra Camarões. Esse MK vem de Milton Keynes, a nova cidade do antigo Wimbledon, uma abreviação que também ficou popular no nome do Milton Keynes Dons – o clube que substituiu o Wimbledon FC. Na teoria, a mudança de nome encerraria 115 anos de história.

O novo clube durou dois anos na terceira divisão, tendo sido rebaixado ao final da temporada 2005-06, e depois amargado duas temporadas na quarta divisão, antes de voltar à League One. Durante esse período e uma posterior estagnação do MK Dons por seis temporadas na terceira divisão, o novo Wimbledon trilhou seu próprio caminho, saindo das divisões mais baixas da pirâmide inglesa e chegando à League Two (quarta divisão) com o apoio maciço de sua torcida, que nos primeiros anos emplacou uma média de público superior a do Wimbledon FC em seus anos derradeiros.

De forma praticamente definitiva, o Milton Keynes Dons se assentou e recuperou boa parte da média de público, chegando a índices próximos de 10 mil pessoas por jogo no Stadium MK. Enquanto isso, em Kingsmeadow, o AFC Wimbledon não consegue ter uma média de público próxima, muito por conta da capacidade reduzida do campo, que não é mais do Kingstonian, mas sim do Chelsea, que o adquiriu para uso de sua equipe feminina. Desde 2013 o AFC Wimbledon vislumbrava a construção de um novo estádio, que fosse para utilização própria, e assim foi feito: o New Plough Lane está sendo construído e tem previsão de término ainda para o ano de 2020.

Por mais que a história entre os dois clubes sempre tivesse sido conturbada, muito por conta da cisão nada amigável, agora cada um segue seu curso. A rivalidade existe e sempre vai existir, mas a representatividade de um clube que nasceu da própria torcida e cresceu de forma ordenada e rápida é muito grande. Um exemplo para várias outras torcidas que passam ou passaram por situações semelhantes e que veem no AFC Wimbledon um grande motivo para unir forças e fazer a realidade acontecer conforme suas intenções.

João Pedro

Embora não faça nenhum curso relacionado ao jornalismo, vê na escrita de textos uma forma de externar sua paixão sobre o esporte. Esteve por dois anos na equipe de esportes da Rádio do Comércio de Barra Mansa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *