Lokomotiva Zagreb, a surpresa croata na Liga dos Campeões
Pela primeira vez nos últimos 20 anos a Croácia adquiriu o direito de uma segunda vaga na Liga dos Campeões da Europa. Como o ranking de coeficientes de 2019 mostra, a Croácia ultrapassou a Suíça, que vinha em queda livre, e garantiu o 15º posto entre os 55 filiados à UEFA. Este desempenho foi impulsionado pelas campanhas recentes dos croatas a nível continental. Entre as temporadas 2014-15 e 2018-19, utilizadas para a elaboração do ranking dos coeficientes de 2019, o Dinamo Zagreb jogou duas vezes a fase de grupos da Liga dos Campeões. Na Liga Europa, o Rijeka jogou duas vezes a fase de grupos e fez duas campanhas decentes, além do próprio Dinamo, que chegou às oitavas de final na edição 2018-19 após liderar um grupo que tinha Fenerbahçe, Anderlecht e Spartak Trnava e eliminar o Viktoria Plzeň na segunda fase.
Com a possibilidade de uma vaga a mais na principal competição continental, o campeonato ganhou um novo tempero. Quando o campeonato foi paralisado por conta da pandemia de covid-19 faltavam 10 rodadas para seu término e o Dinamo Zagreb reinava soberano com 65 pontos, 18 de vantagem para o segundo colocado. Abaixo dele, havia uma grande disputa entre Rijeka (47 pontos), Lokomotiva (46), Hajduk Split (45) e Osijek (42). Destes, Lokomotiva e Osijek nunca haviam disputado a Liga dos Campeões. Ambos seguiram brigando ferozmente pela segunda vaga até a última rodada, que reservou um confronto direto. Quem vencesse estaria dentro; em caso de empate, a vaga ficaria com o Rijeka. Com um gol contra de Danijel Lončar, a sorte sorriu para os azuis da capital, garantindo a vaga na segunda fase preliminar da Champions League.
Fundada em 1914, a Lokomotiva Zagreb nunca foi um clube relevante nacionalmente na antiga Iugoslávia e na própria Croácia. Os alviazuis disputaram a primeira divisão local por nove temporadas nas décadas de 1940 e 1950, com o melhor resultado sendo um terceiro lugar em 1952. Após o segundo rebaixamento em 1957, foram mais de 50 anos nas divisões inferiores, somando Iugoslávia e Croácia. Dentro do novo país, após uma longa estadia na terceira divisão, o primeiro rebaixamento ao quarto nível veio em 2006. O ressurgimento veio junto de uma parceria com o grande campeão Dinamo Zagreb: atuando como parceiro do clube mais tradicional do país, vieram três acessos seguidos e a estreia na primeira divisão croata. Esta possibilidade de jogar a elite apareceu somente após o fim da parceria, que impediria a presença dos clubes na mesma divisão.
Logo após a estreia, veio a entrada de Tin Dolički como presidente do clube. Tin é um advogado especializado em direito comercial e foi consultor jurídico da Agrokor, uma grande empresa do agronegócio balcânico e que passou por um rápido processo de falência entre 2017 e 2019. Tin foi acusado por Ivica Todorić, dono da Agrokor, de “estar em um conflito de interesses” entre a empresa do agronegócio e o fundo de investimento americano Knighthead, representado pelo mesmo Tin na primeira reunião entre as duas organizações. Esta situação fez com que um processo administrativo fosse aberto contra ele e mais dois compatriotas na Ordem dos Advogados da Croácia.
Polêmicas a parte, desde a chegada de Tin Dolički, que ocorreu no final da década de 2000, houve um investimento maciço na estrutura das categorias de base do clube. Com a clara necessidade de vender para ser competitivo, que assola cada vez mais o futebol dos países de “segundo escalão” do futebol europeu, essa nova mentalidade caiu como uma luva. Com a construção de uma estrutura com campos de gramado artificial, refletores e instalações para a base no bairro Kajzerica, criou-se um complexo esportivo visando o futuro sustentável do clube, ao menos financeiramente falando.
O primeiro fruto surgiu em 2012. Com apenas 17 anos de idade e duas temporadas fazendo base na Lokomotiva, Marko Pjaca foi promovido ao plantel profissional do clube. Após uma temporada 2013-14 de destaque, Pjaca foi vendido por € 1 milhão ao Dinamo Zagreb, o “último estágio” do jogador antes de ser vendido por um valor 23 vezes maior à Juventus de Turim em 2016. Nas últimas temporadas, os azuis vem servindo de “base” para o Dinamo Zagreb. Dos 11 titulares do Dinamo no último jogo do clube, disputado contra o Istra 1961 no último dia 21 de agosto, três foram profissionalizados na Lokomotiva: os meias Lovro Majer, Luka Ivanušec e o ponta-direita Lirim Kastrati renderam € 7,5 milhões (quase R$ 50 milhões, em cotação atual e sem correção monetária) aos cofres em Kajzerica.
Também notamos um olho clínico para lapidar talentos subutilizados em outras agremiações. Myrto Uzuni, ponta-esquerda albanês que participou de 30% dos gols da Lokomotiva dentro da última temporada do campeonato local, foi vendido por € 1,8 milhão (quase R$ 12 milhões) ao Ferencváros, atual campeão húngaro. Uzuni foi contratado por somente € 350 mil do Laçi, um clube de meio de tabela da Albânia. O outro exemplo é o de Ivo Grbić, que era um mero terceiro goleiro do Hajduk Split na temporada 2017-18. Contratado a custo zero pelos azuis da capital, foi titular absoluto nas duas temporadas na Lokomotiva, até ser vendido ao Atlético de Madrid por € 7 milhões (R$ 46,4 milhões) para o lugar de Adán na reserva de Jan Oblak, em negociação que envolveu a ida do paraense Álex dos Santos aos alviazuis. Ambas as transferências se concretizaram nesse mês de agosto.
Do elenco atual, o nome mais conhecido dos brasileiros é o de Sammir, meio-campista formado nas categorias de base do Athletico Paranaense e que rodou por alguns clubes paulistas antes de ser vendido ao Dinamo Zagreb e permanecer na Croácia por seis anos, ganhando status de ídolo e a naturalização como croata. Sammir foi vendido ao Getafe no início de 2014 e desde então não chegou a repetir o nível apresentado no Dinamo, mesmo depois de vir ao Brasil jogar a Copa do Mundo de 2014. Ele também jogou uma temporada no Jiangsu Suning, sagrando-se campeão da Copa da China em 2015, e posteriormente rodou por outros clubes, ficou parado e por fim teve uma passagem pelo Sport em 2019 antes de fechar contrato com a Lokomotiva.
Sammir é uma rara exceção do atual plantel da Lokomotiva Zagreb. Segundo o site Transfermarkt, dos 31 jogadores do clube, somente quatro tem mais de 30 anos: Sammir, o goleiro Krunoslav Hendija, o rodado centroavante Mario Budimir e o lateral-esquerdo Ivan Čeliković, de passagem relevante pelo macedônio Shkëndija. Embora somente oito atletas tenham sido formados em Kajzerica, podemos destacar um bom número de jogadores que foram encontrados jovens em clubes menores da Croácia e de países próximos como Albânia e Macedônia do Norte. Desses, o destaque fica para o capitão Denis Kölinger, zagueiro de apenas 26 anos e quase dois metros de altura, formado no Zagreb, comprado pela Lokomotiva por apenas € 200 mil e com um alto potencial de venda em janelas futuras.
O treinador Goran Tomić e seus comandados terão uma missão razoável na segunda fase qualificatória da Liga dos Campeões. Tomić, um croata de 43 anos, foi formado no Šibenik em 1994 e rodou por alguns clubes europeus em sua carreira sem fazer muito sucesso, com exceção do Austria Salzburg, marcando 19 gols em 64 partidas disputadas ao longo de quatro anos da era de vacas magras do clube, os últimos antes da compra da Red Bull. O sorteio reservou um adversário mais fácil e conhecido: embora o Rapid Wien seja historicamente o principal clube de seu país, teve campanhas medianas nos últimos anos e só conseguiu a vaga na Champions após a derrocada do LASK na fase final da Bundesliga austríaca.
É um desafio extremamente complicado, pois temos forças como Benfica e Krasnodar buscando duas vagas na fase de grupos da Liga dos Campeões através da estreitíssima Rota da Liga da fase qualificatória, disputada por 10 clubes. Em caso de classificação da Lokomotiva Zagreb sobre o Rapid Wien, ao menos a fase de grupos da Liga Europa já está garantida – o que seria um grande avanço para um clube que disputou por três vezes a Liga Europa, nunca saindo da fase preliminar.
Os jogadores de pôquer certamente diriam que a situação da Lokomotiva é um all in, uma hora de apostar tudo para conseguir um lugar ao sol, principalmente com a perda da segunda vaga na Liga dos Campeões de 2021-22 e a criação da Liga Conferência, que dificulta ainda mais a possibilidade dos holofotes chegarem nos clubes dos países menos tradicionais. Veremos o que o futebol nos reservará nas próximas semanas.