Um jogador semiaposentado já foi o dono da maior multa rescisória do futebol
Assinado antes do início da temporada 1996-97 pelos 22 clubes do Campeonato Espanhol, o novo acordo de televisão foi o primeiro passo para uma revolução nas cifras que circulavam no futebol local. Duas temporadas antes do contrato multimilionário, Celta de Vigo e Sevilla quase foram excluídos da primeira divisão por problemas financeiros. Após a assinatura do acordo, os dois clubes puderam aumentar significativamente sua folha salarial. O contrato de mais de 60 bilhões de pesetas (cerca de 360 milhões de euros, em valores atuais) também permitiu contratações por valores exorbitantes. Apesar do montante convidativo, nem todos os dirigentes ficaram satisfeitos com os desdobramentos, gerando uma situação bastante curiosa.
Mas antes de chegarmos ao fato precisamos mostrar os atores da história. Cronologicamente, o primeiro a ganhar evidência no futebol espanhol foi Francisco Javier López Alfaro, ou simplesmente Francisco. Formado nas canteras do Sevilla e profissionalizado em 1981, o meio-campista nascido em Osuna alcançou relativo sucesso com a camisa rojiblanca e também com o uniforme da seleção espanhola. A camisa vermelha da Fúria foi defendida por Francisco em 20 ocasiões entre 1982 e 1986. Em 1990, veio a única transferência de sua carreira: o Espanyol retornava à primeira divisão e fez questão de pagar 60 milhões de pesetas (equivalente a 360 mil euros) por um contrato de três anos.
A identificação e o respeito com o clube foi tão grande que Francisco seguiu defendendo as cores do Espanyol mesmo após o rebaixamento na temporada 1992-93. E Alfaro não só vestiu a camisa blanquiazul da equipe barcelonesa no título da Segunda División conquistado em 1993-94 como também estava presente na grande campanha da temporada 1995-96, quando o Espanyol foi quarto lugar e obteve uma vaga na Copa da UEFA pela primeira vez em nove anos.
O segundo ator é um nome um pouco mais conhecido do público brasileiro: trata-se do empresário andaluz Manuel Ruiz de Lopera. Em 1991, Ruiz de Lopera tornou-se vice-presidente de finanças do Real Betis Balompié e no ano seguinte, passou a ser o controlador majoritário dos béticos após adquirir 51% das ações. Seu mandato como presidente do clube durou entre 1996 e 2006 e foi nesse período que o Betis investiu na contratação de brasileiros: o meia Denílson, o atacante Rafael Jacques e o zagueiro Andrei encabeçaram a lista engrossada posteriormente por outros nomes de peso como Marcos Assunção, Ricardo Oliveira e Edu.
Denílson é o terceiro ator. Formado na base do São Paulo e profissionalizado em 1994, o jogador nascido em Diadema foi contratado pelo Betis de Ruiz de Lopera em 1997 após ser um destaques do tricolor paulista no período pós-bicampeonato da Copa Libertadores. A contratação de Denílson ocorreu por um valor recorde para o futebol, 26,5 milhões de dólares (cerca de US$ 46 milhões ou R$ 255 milhões em valores atuais), e mesmo sendo contratado a peso de ouro o jogador só foi integrado ao elenco do Betis um ano depois, após a conclusão da Copa do Mundo de 1998. Outro valor que chamou a atenção foi o de sua cláusula de rescisão: 65 bilhões de pesetas, ou 390 milhões de euros em valores atuais.
O valor totalmente fora da realidade da multa rescisória provocou a ira de José María Calzón, dirigente do Espanyol e que ficou na função ao longo de 40 anos. Na época, Calzón declarou à imprensa que “o futebol se tornou uma brincadeira”. E foi em tom de brincadeira (e também de protesto) que Francisco teve seu contrato renovado no verão de 1997.
Mesmo sem poder contar com o jogador de 34 anos desde o mês de janeiro após ele sofrer a fratura da tíbia em um jogo contra o Deportivo – e haviam pouquíssimas expectativas sobre o retorno de Francisco aos gramados -, o Espanyol renovou o contrato do meio-campista por uma temporada e, com a anuência do atleta, inseriu uma multa rescisória que estabeleceu um novo recorde no futebol mundial: caso alguém quisesse tirar Francisco dos Pericos, precisaria desembolsar 70 bilhões de pesetas, que equivalem atualmente a 420 milhões de euros.
Perguntado sobre o valor, José Maria Calzón expressou o que realmente pensava sobre o cenário do futebol espanhol na época. “A cláusula de rescisão de Francisco é apenas um documento. Só queremos ironizar o que está acontecendo no futebol. A Administração (o governo espanhol) deveria tomar medidas a respeito”, declarou Calzón ao El País.
Como esperado, nenhuma equipe se interessou pelo futebol de Francisco após a inclusão de uma multa rescisória tão alta. O jogador se aposentou naquele mesmo ano de 1997 e passou a fazer parte da equipe de treinadores das categorias de base do Espanyol, desempenhando essa função até 1999. Alfaro chegou a comandar algumas equipes como Real Jaén, Extremadura e Numancia ao longo dos anos 2000 antes de se afastar da beira do campo. No início de 2020, Francisco teve seu nome incluído no hall da fama do Sevilla, clube defendido pelo meia em 302 ocasiões dentro de campo e local de trabalho dele até hoje, agora em múltiplas funções nos bastidores da equipe sevilhista.